Certo amigo (Delmiro Gouveia)
ofereceu ao Padre Cícero um bonito garrote, mestiço de zebu, por ser raça ainda
não conhecida naquele meio. Na impossibilidade de criá-lo dentro da cidade,
confiou o tratamento do animal a um negro, de nome Zé Lourenço, residente no
sítio "Baixa Dantas", do município do Crato.
Esse preto, quando ali chegou, já
era "Penitente em sua terra", isto é, fazia parte de uma associação
oficiosa, fundada pelos antigos missionários e ainda hoje tolerada por um ou
outro padre.
Depois das perseguições
religiosas ao Padre Cícero, começaram a fazer circular que Zé Lourenço, não tendo
mais vida de penitente, abusava da crendice do povo, apresentando o "touro
como autor de milagres".
Então se dizia que a urina do
animal por ele era distribuída como eficaz medicamento para todas as moléstias,
que dos seus cascos eram extraídos fragmentos para, em pequenos saquinhos serem
pendurados ao pescoço, como relíquias, à moda do Santo Lenho; que todos se
ajoelhavam em adoração diante do touro e lhe davam a beber mingaus e papas;
enfim, tudo que uma alma perversa possa conceber.
Quando se procurava apurar a
verdade, ninguém sabia informar, a começar pelos proprietários do sítio onde Zé
Lourenço residia e trabalhava como rendeiro.
Os padres, não sei sob que
fundamento, repetiam essas banalidades. O Padre Cícero, não obstante estar
convencido da mentira, por diversas vezes tentou vender o animal; mas, não só
Zé Lourenço, como também cavalheiros respeitáveis o impediam, fazendo sentir
que além de ser inverdade o que espalhavam, o animal era um bom reprodutor e
estava melhorando a raça do gado ali. Por isso mesmo todos os grandes e
pequenos, o tratavam com carinho, mesmo porque era muito manso, donde veio a
ser conhecido por "Mansinho".
Aconteceu que em um dos meses do
ano atrasado, na ladeira do Horto, se deu um conflito entre um doido e alguns
indivíduos conhecidos por
"Penitentes" e o inspetor policial do quarteirão.
Havendo ferimentos, foram presos os
implicados por crime de natureza leve.
De acordo com o Padre Cícero,
procurei, por meios brandos, conseguir acabar com a prática dos atos dos
"Penitentes".
Os próprios
"Penitentes" concordaram com a minha resolução entregando-me, para
serem queimadas, as vestes apropriadas que ainda possuíam e as respectivas
cruzes, as quais mandei queimar no cemitério.
Eles me informaram que às vezes,
praticavam aquele ritual pelo hábito de suas terras, com o consentimento dos
vigários e na intenção de sufragarem as almas do Purgatório, o que realmente
não me era estranho.
Alguns amigos aconselharam-me
nessa ocasião que eu desmascarasse os que acusavam Zé Lourenço de prática de
feitiçaria. Respondi-lhes nada poder fazer, em virtude de ser ele morador no
município do Crato.
Não sei quem informou o mesmo Zé
Lourenço de que eu ia mandar prendê-lo. O
negro, supondo exata a notícia, no terceiro dia apareceu em minha residência.
Foi quando o conheci pessoalmente.
Mandei prendê-lo, e, apesar das
suas declarações, dele obtive a promessa de ir morar no Juazeiro, para evitar
os boatos.
Ao mesmo tempo fiz vir o touro,
e, de acordo com o padre, vendi-o para o corte, sob a condição de ser abatido
pelo comprador em frente à cadeia.
Abatido o touro em frente à
cadeia, em plena rua, às duas horas da tarde, perante centenas de pessoas, de
acordo com o Padre Cícero, foi a carne conduzida para o açougue público, onde
também foi vendida toda ela, não chegando para todos que quiseram comprá-la,
visto ser da melhor qualidade.
Ao chegar a notícia, no Crato, de
que Zé Lourenço não mais voltaria ao sitio Baixa Dantas, indo fixar residência
no Juazeiro, recebi diversos telegramas, cartas e visitas de homens
respeitáveis daquela cidade vizinha, empenhando-se para que eu não retirasse Zé
Lourenço do seu sítio, tal a falta que ele fazia aos proprietários, pelo
auxílio que lhes prestava nos trabalhos de agricultura, e em outros préstimos.
O pedido, porém, que calou mais
no meu espírito foi o do capitão João de Brito, cunhado do nosso colega Deputado
Hermenegildo Firmeza, o dono da terra da qual ele, Zé Lourenço, era rendeiro.
Consenti na volta do negro ao seu
sitio, e assim terminou a história "das mil e uma noites" do touro
"Mansinho".
Interrogando esses cavalheiros
que se empenharam pela volta do negro, pelo motivo de não desmentirem os que o
caluniavam, me responderam todos sempre assim terem procedido; mas que os
boatos eram para desmoralizar o Padre Cícero e, dessa maneira, não podiam
evitá-los.
Zé Lourenço, que não freqüentava
o Juazeiro, depois disso começou a freqüentá-lo aos domingos para ali fazer sua
feira, e, durante o tempo que eu lá estive, nesses mesmos dias, almoçava
comigo, em minha casa, onde se hospedava.
(Extraído do seu livro Juazeiro do Padre Cícero –Depoimento para a história).